quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Meio Ambiente e o Direito

“A Natureza é a arte de Deus” escreveu Thomas Browne em pleno século XVII, muito depois da mudança de paradigmas que ocorreu com o fim da idade média. A visão teocêntrica houvera sido atropelada pela fúria renascentista que reestruturou a maneira de pensar do Homem, colocando-o no centro do Universo, referência máxima e absoluta de valores. O Iluminismo veio alicerçar o antropocentrismo que se impôs no pensar humano: o Homem posta-se assim perante os outros seres naturais numa posição de superioridade e até de antagonismo.
Esta alteração de arquétipos revolucionou a Humanidade: para o bem e para o mal.
Cabe aqui falar de Ambiente, o meio natural e social onde se vive, e das alterações que sofreu face ao fenómeno acima exposto.
A Natureza, como “arte de Deus”, fora respeitada, temida e protegida até à idade média: a ideia que Browne transmite, 5 séculos depois, é o espelho da mentalidade teocêntrica medieval.
Actualmente, no entanto, vigora um modelo de herança iluminista que coloca o Homem como Sol, Razão, Fim.
A revolução industrial, a revolução francesa, as grandes guerras e os períodos que a elas se seguiram transformaram paulatinamente a sociedade ocidental num antro consumista e ansioso, obeso e caótico, sustentado por uma indústria exaustiva e poluidora que exauriu, segundo as últimas perspectivas, indelevelmente o meio ambiente.
De há anos para cá vem sido chamada a atenção, por cientistas maioritariamente, mas também por escritores (já no séc. XIX Victor Hugo se lamentava” É triste pensar que a natureza fala e que o género humano não a ouve.”), filósofos (Francis Bacon disse “Nós não podemos comandar a Natureza a não ser obedecendo-lhe”) e até filmes de massas (numa cena do tão badalado “Matrix”, o vilão acusa: “Os seres humanos são uma doença. Um cancro neste planeta. Vocês são uma praga.”) para a necessidade de agir.
Sim, porque o tempo de precaver, dialogar, ponderar, passou. Churchill disse-o (“The era of procrastination, of half measures, of soothing and baffling expediences, of delays, is coming to its close. In its place we are entering a period of consequences”) a outro propósito, mas a frase aplica-se igualmente nesta situação: é preciso tomar medidas urgentes para diminuir a emissão de gases para a atmosfera, atenuando o afincar do aquecimento global, que derrubará a Humanidade que a Natureza construiu. Al Gore disse, e bem, que já não é uma questão política: é uma questão moral. Acrescento: é, acima de tudo, uma questão jurídica. O agir que se impõe deve ser presidido por critérios justos e equitativos, sob pena de se cair no extremo oposto, em totalitarismos ecologistas radicais (passe a redundância). Cabe ao Direito o papel de sempre: ser o fiel desta balança.
Compete pois, excedida que está a capacidade de renovação dos ecossistemas terrestres, deixar de lado interesses eleitorais, interesses corporativos, interesses nacionais, para tomar nas mãos a responsabilidade de, todos juntos, tomar medidas a favor do Ambiente, o verdadeiro “bem público universal”.
O Direito tem, aqui, importância fulcral: o Direito existe para a Pessoa e a Pessoa surgiu da Natureza. “Nada pode nascer do Nada”. A defesa do ambiente é, por isso, uma prioridade para o Direito. A (boa) prática de reciclar, poupar energia, água, tem que deixar de fazer parte só da ordem Moral para ser juridicamente positivada em específicos deveres integrados numa política de Direito Universal.
É missão, melhor, imperativo, do Direito, que o antropocentrismo ceda em boa medida face ao ecocentrismo que a actual situação impõe. Através do Direito poderá superar-se a política legislativa populista e eleitoral que legalizou a destruição do ambiente. O Político ignorou o Direito, mas o Direito não pode ignorar a Pessoa.
As medidas a tomar serão radicais, atentatórias para alguns, mas está em causa a Vida Humana: existirão conflitos de interesses a dirimir, crises a estalar, mercados a ruir. Assim, mais que nunca, caberá ao Direito, pela mão dos jurisprudentes, “endireitar” o tortuoso caminho que virá.
Um provérbio africano traduz a mentalidade a haver: “Trata bem a Terra. Ela não te foi doada pelos teus pais. Ela foi-te emprestada pelos teus filhos.”
Mas não só no meio ambiente se fez sentir esta mudança de paradigma: também os animais sentem na pele a sobranceria humana.
São recorrentemente noticiados casos de crueldade humana para com animais: como referido, a elevação do Homem ao altar supremo tornou certas pessoas incapazes de discernir onde acaba essa superioridade.
Nesse sentido, surgiram organizações que pugnam pelos direitos dos animais. Coloca-se, de pronto, a questão: os animais têm direitos?
O Direito foi criado pelo Homem para o Homem; como tal, o Direito não reconhece aos animais “direitos” subjectivos: invocáveis em defesa da Pessoa, da dignidade, da propriedade, etc.
Não obstante, é completamente contrário ao direito o tratamento desumano (lá está: a Humanidade é um pressuposto do Direito) de qualquer forma de vida: assim, mesmo não tendo os animais direitos, o Direito impõe contudo aos Humanos (únicos destinatários das suas regras) deveres de respeito pelos animais, deveres que a ser violados comportam violações antijurídicas a punir. Como disse Bentham “Não importa se os animais são incapazes ou não de pensar; O que importa é que são capazes de sofrer” e esse sofrimento não é lícito face ao Direito.
Tendo por base a premissa referida, aplicar-se-á às situações quotidianas: é prática antijurídica maltratar animais para divertimento pessoal; é prática antijurídica matar animais por razões despiciendas; é prática antijurídica humilhar, torturar ou desrespeitar animais. Assim responde o Direito às touradas, às lutas de cães, ao tráfico de animais, às indústrias que abusam dos animais em prol do lucro.
Oiça-se Dalai Lama: “A vida é tão preciosa para uma criatura muda quanto é para o homem. Assim como ele busca a felicidade e teme a dor, assim como ele quer viver e não morrer, todas as outras criaturas anseiam o mesmo.” Oiça-se Schweitzer: “tudo o que é vivo tem o direito de viver". Oiça-se Darwin: “A compaixão para com os animais é das mais nobres virtudes da natureza humana”. Mas oiça-se, sobretudo, o Direito: Todas as formas de vida devem ser respeitadas.
Porque, parafraseando o Professor Vera Cruz, “Se o Direito é para os humanos, só há humanidade no Direito se este constituir como dever o respeito devido aos animais”.
Outro fenómeno intrinsecamente ligado à divinização do Homem é a padronização da aparência física: foram criados, através de intensas campanhas por parte de agências de modelos, farmacêuticas, marcas de roupa, e outras interessadas, cânones de beleza, que se impõem ao bom-senso e arrastam milhares de jovens (e não só) para preocupações obsessivas e compulsivas que resultam em doenças, entre as quais as nunca demasiadamente mediatizadas anorexia e bulimia.
Estas doenças advêm de concepções de beleza alicerçadas no ideal de magreza: são pois fenómenos do Mundo ocidental moderno, que não guardou reminiscências do jargão “gordura é formosura”.
As pessoas esquecem-se que, como diz Pascal, “A própria moda e os países determinam aquilo a que se chama beleza”, i.e., todos estes ideais são transitórios, efémeros, o que comprova que não existe UM ideal de beleza.
Estes complexos originam fenómenos a combater, como por exemplo a dieta alimentar exagerada, que degrada a saúde, a dignidade e a vida humana, num processo de escravização dos modelos comportamentais que vem hipotecar a felicidade interior. Jules Renard resume tudo: “A felicidade é sermos felizes; não é fingirmos perante os outros que o somos”. Porque “só os ignorantes julgam a interioridade a partir da exterioridade.
É este processo de degradação que vem exigir a intervenção firme do Direito, não atacando o problema, mas atacando as causas: é possível impor limites aos fascismos das agências de castings, é possível combater os preconceitos que estão na base destes distúrbios.
E, mais uma vez, importa atacar o lado oposto da questão: a obesidade, que nasce de um consumo sôfrego impulsionado pela indústria fast-food, é igualmente um problema a ser atacado pelo Direito: é preciso derrubar interesses poderosos em nome da dignidade humana.
Em defesa do ambiente, dos animais e contrariando os gigantes que dominam a indústria alimentar, surgiram movimentos vegetarianos, que pugnam pelo ambiente, que rejeitam a ingerência de animais e promovem os produtos verdes, naturais. Muitos destes movimentos são caracterizados pelo radicalismo: bem há pouco tempo Portugal foi palco de uma intervenção nada ecológica de um dito “Movimento Verde Eufémia”, que destruiu uma plantação de alimentos transgénicos destinados ao mercado de massas. Estes são excessos que o Direito rejeita.
Concluindo, o Direito tem regras que permitem ultrapassar estes problemas: cabe aos jurisprudentes alertar para as soluções existentes e lutar pelo caminho justo.
São batalhas a ser travadas entre o cultor do Direito e o Legislador, mas cabe ao primeiro demonstrar que a razão não pode ser escrava da autoridade.

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